19 agosto 2007

Favela: um espaço de emancipação?

(Brasil) Ao pensar a favela como um espaço de liberdade, posso estar a negar o fato de que lá estão enclausuradas milhões de pessoas (os excluídos) - não é este o meu intento. Nem também é minha vontade estabelecer a "favela" como o "espaço do pobre" - isso a "democracia brasileira" já faz por mim... O que gostava de ressaltar é que existe um fato interessante na co-existência entre a favela e o condomínio.

Nessa arrumação social, os mais pobres estão impedidos de co-habitar com os mais ricos, o que significa dizer que embora não possam morar juntos, os dois convivem, porque há o trânsito de pessoas - quer seja o rico que vai comprar droga à favela ou passa de carro em frente a ela (no caminho do trabalho) quer o pobre que trabalha no condomínio (ou que passa em frente a ele na volta do trabalho) e assim por diante. Isto é dizer: os dois estão isolados, como vizinhos, mas se reconhecem como tal - por mais que um tente ignorar o outro, encontram-se, inexoravelmente, nem que seja no Carnaval... O que isso quer dizer? Bem, uma das coisas em que podemos pensar é: um cenário em que os atores conhecem seus papeis numa peça sobre a injustiça; chegará um momento em que o oprimido vai tentar subverter a situação e clamar por justiça. Mas, como esse clamor ocorrerá numa sociedade majoritariamente cristã e hipócrita - ou não é do Brasil que falamos? [Defina-me "Brasil", por favor?]


Ora, nosso Estado é fruto de um crime praticado contra os índios que aqui habitavam. Interessante a desginação "índio", porque representa o cume da estupidez européia - quando os "descobridores" pensavam alcançar a Índia. Isso para não falar da massiva, cruel e imoral escravização dos povos africanos - que continua mascarada em nossa sociedade até os dias de hoje. Então, como é do nosso conhecimento, o primeiro crime na fundação do "nosso" País foi o massacre/genocídio/escravização de milhões de pessoas. Assim, seguiu-se a colonização que, no "nosso" caso, pressupõe a destruição da Mata Atlântica e a extração mineral, com vista a abastecer a Metrópole com os produtos primários com os quais os portugueses operavam no comércio europeu (metalismo). Com a crise política européia, advinda das guerras napoleônicas, e a crescente influência dos brasileiros ricos na Corte portuguesa, arquiteta-se o processo de independência - que estabelecerá, dentre outras coisas, uma dívida externa impagável, a reverter-se em favor dos credores ingleses - e a posterior formação da República - agora, com credores norte-americanos. Não é à toa que somos um País de corruptos; nossa história é a história do "crime de Estado". Seguiram-se vários governos, de maioria militar mas, majoritariamente de "homens brancos" (talvez, de facto, na totalidade). Mas então, "por que lutar por um Brasil de criminosos"? A questão não é essa.

O que se esconde por detrás dessa problemática é a contínua obliteração da capacidade política - capacidade intrínseca ao gênero humano, devido à vida em sociedade -, por meio de uma série de atentados contra a legítima e verdadeira participação popular no controle da política brasileira. Não se trata de outra coisa, senão de uma série de golpes e estratagemas que substituíram a possibilidade de uma verdadeira emancipação popular brasileira. A democracia no Brasil não foi e parece nunca deixar de ser apenas um projeto; quando podemos falar que ela realmente existiu? Um país como o "nosso", que nunca fez uma reforma agrária (democratização do acesso à terra), nem nunca promoveu uma real segurança social (democratização do acesso à vida digna), nem nunca promoveu o bem-estar social (democratização do acesso à riqueza), nem nunca promoveu a Educação para todos (democratização do acesso ao Poder), pode se dizer um "país democrático"? Penso que não. Mas eis que surge a figura da favela e sua "liberdade enclausurada", opondo o "Estado do crime" ao "crime de Estado"; ela é o avesso do avesso, porque se constitui num Estado paralelo que reproduz a violência que o Estado oficial pratica, só que de forma contrária ao Poder estatal formalizado. O Estado de ilegalidade que ali se exprime é o resultado da organização social do pobre; as pessoas que ali residem foram obrigadas a construirem suas vidas sob a mancha da ilegalidade, sem o apoio tecno-burocrático do Estado, em terrenos ilegais e habitações irregulares - sem saneamento, iluminação e outros serviços públicos. Qual é a origem étnica das favelas? A resposta a esta última questão deve vir da resposta de outras perguntas: para onde foram os escravos "libertos" da senzala? Para onde foram os expropriados dos terrenos do litoral?

Penso que as pessoas que foram "libertas" da escravidão construíram seus espaços dentro das cidades; porém, faltava-lhes um espaço de não-interferência e auto-determinação... a favela. Com base no "perdão cristão", os oprimidos esqueceram-se de toda a sua exploração e organizaram-se ao lado dos seus opressores. Será que das favelas irromperá, um dia, uma revolução social? Possivelmente. Mas, para justificar esta idéia, seria preciso discutir aspectos do sistema de crenças brasileiro (religião, cultura e formações étnicas regionais) e outras formas de coerção social, o que exigiria ir além deste reduzido espaço textual. O certo é que, mesmo diante de várias técnicas de controle social e/ou submissão pela força, a larga maioria da população que vive em condições de miséria, desigualdade e exclusão tende a se rebelar e eliminar as bases sociais e econômicas em que subjaz a exploração da vida humana - mais cedo, ou mais tarde. É uma idéia que merece reflexão e uma boa dose de paciência - ao contrário do que possa parecer (pela urgência da fome). Não quero dizer que somente o tempo resolverá isso, sem alguma intervenção consciente; pelo contrário, penso que a sociedade da informação e as condições econômicas precárias criarão as condições necessárias ao movimento de libertação democrática brasileira.

Se pensarmos em termos de entropia, a ordem social de exclusão que é imposta aos pobres (e garantida por meio do controle do aparelho de violência estatal) converteu-se numa energia criativa, convertida em um movimento de desorganização social. Isso porque, da interação entre os espaços urbanos (favela e condomínio), surge uma nova organização social (híbrida), que vai canibalizando e mesclando as classes sociais. Essa energia criativa é a liberdade (ou o verdadeiro "fim da escravidão"), a não-interferência e, quem sabe, a esperança de emancipação das camadas pobres das grandes cidades brasileiras.

Lembre-se de Conselheiro...
***
P.S. - Outro dia pensei na origem da expressão "você está legal?" (ou seja, "está tudo bem com você?"), que nós brasileiros usamos no cotidiano (os portugueses não a entendem)... Não existe algo de escondido na transfiguração da palavra "legal" (que é um termo jurídico) para o significado de "bem estar"? Talvez, a origem desse significado e sua utilização devam algo à linguagem que se fala nas favelas.

6 comentários:

Anônimo disse...

Seria isso conseqüência da má distribuição de renda, onde a maioria do capital está nas mãos da burguesia¿ Creio eu que sim.


Julieta

Anônimo disse...

Concordo com vc Julieta. A meu ver essa tamanha desigualdade sempre será um problema. A história do rico cada vez mais e rico e o pobre cada vez mais pobre..será?

Anônimo disse...

Será que após essa tão aclamada revolução virá o equilíbrio? Ou será que apenas se conformará um outro re-arranjo para uma nova desordem (entropia)?

PS: E o nosso "Tudo jóia?", qual a etimologia? ;)

Antônio T. Praxedes disse...

Ora bem, parece que, enfim, existe alguma preocupação com o tema...
É vidente que o problema da favela está vinculado à concentração de riqueza; quanto mais a riqueza se concentra nas mãos de poucos, mais isso trás miséria para muitos. Tem sido assim ao longo dos tempos, desde as primeiras grandes civilizações. A democracia grega em Atenas é exemplo clássico e inspirador da democracia ocidental; porém, excluía mulheres, escravos e estrangeiros do processo político... Assim, os "projetos sociais" e a repartição de riquezas era determinados por uma minoria (os homens, maiores de idade, naturais de Atenas, chamados "cidadãos"). Essa é a origem da democracia.
Na realidade, toda conformação social que se planeje acaba por se desorganizar, naturalmente. A energia gasta para manter um modelo de organização é diretamente proporcional à quantidade de elementos que compõem esse modelo ou sistema; quanto maior o número de grupos (elementos), maior o desgaste político (entropia).
O que penso - e articulo isso com uma boa dose de sensibilidade - é que o Brasil já ultrapassou um ponto de equilíbrio entre o controle (energia de agregação discursiva) e a conformação (aceitação do modelo imposto).
Um exemplo disso é a favela: o crime organizado e as associações de moradores são "poderes paralelos"; a articulação entre esses dois "Estados" (o legal/formal e o ilegal/informal) já apresenta um desgaste insustentável, ao ponto de se planejar a ocupação das favelas do Rio de Janeiro com as forças armadas, por exemplo.
No texto que estamos comentando, o meu interesse foi/é trazer aos olhos do internauta um contato maior com uma situação que é muitas vezes ignorada (no meio acadêmico).
Por sinal, agradeço aos comentários, porque me fazem refletir sobre minhas idéias (vocês têm me dado uma ajuda especial, sem saber).
Um grande abraço a todos.
A.T.P.

P.S. - O nosso "tudo jóia" deve ser relativo a algum escândalo envolvendo cuecas; se bem que de escândalos desse tipo, o mais cômico foi o do Rei D. João VI, que saiu do Brasil vestido de mulher, depois de "assaltar" o Banco do Brasil...

Anônimo disse...

É,de fato, meu caro Antônio T. Praxedes, vir em seu blogger e ler uma nóticia, uma idéia sua também muito nos acrescenta . Ao ver algo que tentamos "fazer de conta" não existir, ou melhor, literalmente fechar os olhos para os problemas que não nos atinge. Mesmo não morando em favelas, não passando por as dificuldades que essas pessoas passam, somos ligeiramente responsáveis por isso. Uma vez que temos autonomia de escolher nossos governantes; desde o princípio somos deparados com o tema em tela, mas "talvez" nada fazemos, como o problema diretamente não nos atenge, passamos por ele sem perceber! Saibas escolher melhor quem nos representará, que irá conduzir nosso cotidiano.

E será que tah tudo jóia? Claro que não..pelo menos, não acho!

Grata,

A. Lara

Anônimo disse...

Também corroboro que tais temas aqui discutidos são extremamente enriquecedores. Resalto inclusive o grande benefício que a internet nos proporciona. Provavelmente o mais democráticos veículo de comunicação, ao menos no que se refere a livre expressão, pois ainda deixa a desejar em quesitos como o acesso à população que em países como o Brasil ainda é reduzido apesar de crescente.
Porém, gostaria de ver algum comentário que tratasse de soluções (plausíveis) para os problemas mencionados. Fiquei sabendo que existe um projeto do governo estadual, utilizando verba federal, para a reurbanização das favelas como a do Complexo do Alemão (13 favelas) em que, por exemplo, serão instalados teleféricos (6 estações) para auxiliar o acesso dos moradores, a construção de unidades pré-hospitalares e o alargamento e reurbanização de várias ruas destas favelas. Por outro lado, neste mesmo local, esse mesmo governo promoveu uma verdadeira operação de guerra nesse último mês onde ocupou, durante 57 dias com um efetivo de 1.350 homens, parte do complexo de alemão; saldo: 44 mortos e 78 de feridos entre bandidos e moradores. Pergunto: qual a solução (ou soluções)? Sabendo que habitam o complexo 250.000 pessoas e estima-se que existam 400 traficantes nessas 13 favelas, há eficácia em se utilizar a força excessiva como solução aos problemas advindos das favelas? Urbanizar provendo infra-estrutura e integrando as favelas a paisagem urbana das cidades não seriam apenas soluções paliativas para esse grave e complexo problema?
Se a resposta para esta última pergunta for sim, então incluiria uma sugestão que entra em linha com a lógica assistencialista do atual governo. Seria a criação de mais um bolsa-alguma-coisa como, por exemplo, o bolsa-habitação, pois como todos temos o direito à alimentação, por ser uma necessidade básica na qual antes de satisfazê-la não se consegue suprir as outras (Abraham Maslow), a moradia (como o abrigo do ser humano) também se enquadra nesse patamar de necessidade. O que acham?

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