24 junho 2019

Democracia brasileira contemporânea: "Nós e eles"

A formação das sociedades humanas primitivas esteve ligada à formação de diferentes estruturas sociais, que foram formadas de acordo com a fase de desenvolvimento político de cada uma delas. A família é entendida como esse primeiro núcleo gregário, seguida pela tribo, chefatura, protoestado e Estados[1]. Cada uma dessas configurações sociopolíticas se identifica com a amplitude da participação no poder decisório, do âmbito mais restrito, até o mais alargado, determinando sobremaneira a conduta dos atores sociais na configuração das relações entre os integrantes do grupo gregário em questão. E por que essa temática é importante para o debate da relação entre Democracia e Política?

Para responder a essa pergunta, é necessário compreender que a grande questão que envolve a formação dos agrupamentos humanos é o sentimento de pertença: a identidade que se cria entre os membros que os compõem. Obviamente, que essa identidade é forjada num espaço territorial e cultural (língua, religião, moral e regras de organização social) e, em decorrência das necessidades de sobrevivência, sobre determinados fatores econômicos e de segurança [2]. Daí, a necessidade de se criarem fórmulas de proteção do agregado social contra invasões e agressões advindas do contato com outros grupos sociais e, nesse sentido, todos os elementos que ajudam a definir a identidade coletiva podem ser utilizados para isso: a religião, estabelecendo o antagonismo entre fiéis e infiéis; a política, com os aliados e os opositores; a guerra, com os amigos e os inimigos; a nação, com os nacionais e os estrangeiros, e assim por diante [3].

Feitas essas considerações iniciais, é preciso contextualizar o momento histórico no qual a questão da Democracia se insere, levando-se em consideração a flexibilização do conceito de Soberania e a inserção do conceito jurídico-político de "povo", em substituição à ideia de "nação", no contexto democrático. Sem percorrer todo o histórico sobre a formação dos Estados contemporâneos, é possível afirmar que o modelo atual que dá sustentação às relações políticas entre os cidadãos e os demais membros que compõem as sociedades - como os transentes e refugiados - está fundamentado no conceito de governação multinível [4]. Como bem assinala Paulo Bonavides [5], esse sistema tem por alicerce a inserção de elementos jurídicos do Direito Internacional Público nos ordenamentos jurídicos nacionais que, de acordo com Antônio Carlos Wolkmer [6] passou a inserir elementos provenientes dos tratados internacionais relacionados aos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais). Vale dizer que esta nova composição é o resultado da elaboração de uma sociedade de Estados que, aderindo ao multilateralismo na condução dos fatores geopolíticos como: equilíbrio de poder militar, organização do comércio e defesa da liberdade política e social. Isso levou à criação de um sistema internacional que visa regulamentar as relações entre os países em vários níveis: local, nacional, regional e global [4].

Destarte, é necessário que se compreenda que a defesa do pluralismo político integra a própria continuidade das relações em um mundo globalizado, da mesma maneira que as sociedades contemporâneas contém em si uma diversidade de grupos sociais, caracterizada pela heterogeneidade desses grupos. A constatação dessa realidade multidimensional das sociedades atuais faz emergir a necessidade de estruturar sistemas políticos que possam reconhecer a existência de grupos de interesse que divergem entre si na formação das agendas políticas nacionais [7]. Nesta difícil estruturação dos projetos e programas de governo, os diferentes atores sociais se utilizam das regras democráticas de participação não apenas para escolher seus representantes políticos, mas, sobretudo, para lhes influenciar no processo decisório legislativo que aloca verbas e planeja ações para governar a sociedade [7]. Porém, observa-se que a grande questão que se esconde por detrás dessa dinâmica política é a defesa dos interesses das minorias (grupos com menor influência sobre os governantes) e as maiorias políticas: como impedir que a vontade da maioria impeça a cidadania e a convivência pacífica entre os diferentes grupos de interesses?

Uma das soluções para esse impasse nas práticas democráticas é garantir que a vontade da maioria política (50% +1) não impeça o exercício de direitos das minorias, assegurando, inclusive, uma diferenciação jurídica estatutária, que reserve direitos e deveres de maneira equitativa para equilibrar as diferenças sociais, econômicas e culturais: assegurando o acesso aos bens jurídicos àqueles que se encontram em situação de hipossuficiência [8] e de representação política diminuta [9]. Isto significa que a Democracia deve ser considerada como um regime político não-excludente, impedindo que os grupos sociais com maior poder político alijam os direitos civis e políticos, sociais e econômicos e culturais dos grupos politicamente mais fracos - seguindo os desdobramentos das ideias apresentadas por Wolkmer [6] e de Bonavides [5]. Além disso, para que se possa falar em comportamento político, não se deve admitir a continuidade do entendimento de natureza fascista que cria o antagonismo entre amigos e inimigos no âmbito político [10]. A Política, entendida como arte e técnica para governar, evoluiu ao ponto de condensar a Democracia como um modelo (imperfeito) de governação que, apesar de todas as suas falhas operacionais (como a questão do domínio dos partidos políticos sobre as decisões políticas e o déficit de participação dos cidadãos, por exemplo), tenta conciliar as diferenças sociais com o apoio no Estado de Direito [11]: por isso, empregam-se as expressões Estado Democrático de Direito ou Estado de Direito Democrático para caracterizar essa equilíbrio entre Direito e Democracia na formação da estrutura estatal, revelando o aspecto jurídico (Direito) e político (Democrático) que deve dar contorno às ações dos poderes públicos, na figura de seus representantes.

É por essa razão que o discurso que estipula uma falsa dicotomia "nós e eles" no sistema democrático é contraproducente na conformação das diferenças políticas entre os grupos de interesses, porque o exercício da participação política deve ser assegurado a todos, de maneira a que cada um dos grupos sociais possa ter o direito de apresentar suas posições políticas perante as autoridades constituídas, nos meios de comunicação legalmente instituídos para tal. Essa exposição de ideias deve seguir os valores políticos institucionalizados que, no Brasil, integram o corpo da Constituição Federal de 1988, dentre os quais se destaca a liberdade de pensamento e expressão. A estruturação da ideologia excludente do "nós e eles" decorre da falsa percepção - impulsionada por uma autêntica paranoia - de que as vozes dissonantes devem ser silenciadas a todo custo, pois representam a ameaça a uma homogeneidade social. Porém, como discutido e reiterado por diversos autores, a sociedade brasileira é composta por diversas sociedades: as diferenças culturais são apenas um dos exemplos que demonstram essa heterogeneidade, além de outras como as diferentes etnias e línguas (a oficial e as indígenas) que se falam nestas terras. Para além disso, existem diferentes posicionamentos morais entre esses diferentes grupos; a expressão de uma dessas moralidades só pode ser entendida como Ética se tal sistema moral não deseje obliterar a existência dos demais [12].

Vale lembrar que o comportamento dos regimes totalitários sempre esteve correlacionado com a ideia de homogeneidade social: a História universal registrou os resultados nefastos da dicotomia "nós e eles" ou "amigos e inimigos" do Fascismo italiano e de outros regimes euro-asiáticos, no contexto da organização sociopolítica e do estabelecimento da ordem social. Todas as tentativas de homogenização social apagam a diversidade, a diferença e as liberdades públicas e privadas, fazendo distinções arbitrárias que separam cidadãos e não-cidadãos, com base em distinções de natureza religiosa, étnica, sexual (gêneros) e ideológicas. Eis o atual estágio da Democracia brasileira contemporânea: o reforço da distinção entre grupos sociais que leva à diminuição da representatividade e à exclusão de grupos políticos minoritários que se demonstram dissonantes da vontade da maioria.

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[1] Fukuyama, Francis. The Origins of Political Order - From Prehuman Times to French Revolution. 2.ed., Profile Books, 2012). 

[2] Turner, John C. Redescubrir el grupo social: Una teoría de la categorización del yo. Madrid: Ediciones Morata, 1990.

[3] Giordan, Henri. Démocratie culturelle et droit à la différence: rapport présenté à Jack Lang, ministre de la Culture. Paris: La Documentation française, 1982.

[4] Duarte do Amaral, Arnaldo José. "A concretização da justiça em um mundo hiperglobalizado: necessidade de uma abordagem interdisciplinar". In: Borges, Alexandre W.; Coelho, Saulo P. (Coords.). Interconstitucionalidade e Interdisciplinaridade: Desafios, âmbitos e níveis de interação no mundo global. 1. ed. Vol. 1. Uberlândia: Edição Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparado, 2015, pp. 108-124.

[5] Bonavides, Paulo. Ciência Política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

[6] Wolkmer, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do Direito. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

[7] Bilhim, João Abreu. "Políticas públicas e agenda política". In: ISCSP. Valorizar a Tradição: Orações de sapiência no ISCSP. Lisboa: Edições ISCSP / Universidade de Lisboa, 2004, pp.82-102.

[8] Abe, Maria Inês Miya; Vidal Neto, Pedro. A seguridade social em função dos direitos humanos. 2007. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

[9] Norris, Pippa. "Representation and the democratic deficit". In: European Journal of Political Research, n. 32: 273–282, 1997.

[10] Schmitt, Carl. O Conceito do Político. Lisboa: Edições 70, 2015.

[11] Poblete, Manuel Núñez. "Una introducción al constitucionalismo postmoderno y al pluralismo constitucional". In: Bascuas Jardón, Xoán-Carlos (et al.). Multiconstitucionalismo e multigoberno: estados e rexións na Unión Europea. Santiago de Compostela: Universidade de Compostela, 2005, pp. 19-55.

[12] Bittar, Paulo. Curso de Filosofia do Direito. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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