21 junho 2015

Refutar é preciso. Viver não é preciso

A intolerância como direito humano


Finda a acirradíssima eleição presidencial uma parte do debate público se voltou para a questão das amizades desfeitas no curso da campanha. Geralmente o tom com que se analisou o rompimento de laços afetivos - também parentais e amorosos – no disputado período, foi de inequívoco pesar e mesmo deboche diante do ‘desprezível’ motivo: as paixões políticas. A tão mal afamada dimensão da vida ganhou assim uma boa razão para ser diligentemente atacada.

Chegou-se mesmo, a propósito dos intolerantes amigos, a esgrimir-se a conhecida máxima ‘voltairiana’ segundo a qual ‘posso não concordar com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizê-la’: residiria precisamente nesse ponto o espírito ‘radicalmente’ democrático do qual esses ignóbeis brigões estariam também radicalmente alienados.

De fato, tirada de qualquer contexto e tomada ao pé da letra a frase transforma Voltaire num apologeta da mais irrestrita liberdade de expressão. Ledo engano. Foi uma sua biógrafa, Evelyn Hall que cunhou a expressão -entre aspas e em primeira pessoa, assim provocando a confusão – para resumir a posição do filósofo contra a condenação institucional de um livro do pensador seu contemporâneo, Helvetius, do qual, muito embora, discordava frontalmente. Uma situação muito específica, portanto. Mas o leitor comum, por si só, mesmo desavisado desses pormenores luxuosos da historiografia, já veria contrariada a falsa impressão ao ler o não menos célebre ‘Tratado da Tolerância’.

Nessa obra seminal do iluminismo, Voltaire tornou causa pública as inconsistências de um processo judicial francês que culminou na condenação à morte, pelo suplício da roda, de um homem inocente. Na base do erro da justiça e na hediondez da tortura: a intolerância religiosa. Aí, longe de clamar por uma tolerância religiosa sem peias o filósofo nos ajuda a distinguir o que é tolerável – as crenças e superstições – do que é intolerável – o fanatismo e as perseguições que o tomam por base.

Sob certas circunstâncias, ao fim, a tolerância deve dar lugar à intolerância, justamente quando as pessoas - no caso em tela religiosas, no nosso presente político, religiosas, partidários e antipartidários - se tornam, elas mesmas intoleráveis por serem intolerantes. Para Voltaire na aurora do Estado Laico o desrespeito pela liberdade religiosa e pela lei pública é o ‘único caso em que a intolerância é de direito humano’.

Seguramente as discórdias que nos agitaram a alma nos últimos tempos têm mais amplitude que as crenças religiosas. Ainda bem. Mas o princípio não perde seu poder heurístico: nossa democracia começa a desenhar, nas instituições públicas e nos afetos privados, os limites da tolerância. A história segue seu caminho e ensina que há amizades que são corretamente dispensáveis: aquelas que justamente desdenham do desejo utópico da fraternidade universal. Se permanecem irredutíveis e continuam na cidade, é justo ao menos expulsá-las de nossas vidas. Sem culpa.

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Publicado na coluna "Opinião" do jornal O Povo, em 26/11/2014

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