22 junho 2015

A ordem do exame: sobre a extinção do exame da OAB (um estudo de caso)



Recentemente, uma polêmica que na verdade não é nova foi reacendida. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), trouxe à pauta o projeto de lei 7.116/2014, que visa extinguir o tradicional exame da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. A medida teria em vista o combate à burocratização, ao corporativismo e à corrupção que, segundo Cunha, maculam a importante instituição. A despeito da indignação de “meritocratas”, de um lado, e da euforia de “mediocratas”, do outro, ninguém parece ter levar realmente a sério a proposta do deputado, conhecido por seus excessos, de modo que tem prevalecido a opinião dos próprios juristas acerca do assunto, cujo cerne pode ser resumido em dois argumentos.

Em primeiro lugar, a aprovação no exame de Ordem atesta que o bacharel adquiriu os saberes jurídicos necessários ao exercício da advocacia, constituindo uma maneira legítima e eficaz de ranquear qualitativamente os egressos dos cursos de direito. Trata-se, assim, de um “filtro qualitativo”, ademais, imprescindível haja vista a multiplicação do número de faculdades de direito no país, que se avoluma ano a ano, tornando cada vez mais difícil a fiscalização governamental. Consequência direta disso é a exponenciação da quantidade de egressos, dos quais não mais do que em média 15% consegue a aprovação no exame de Ordem.

Em segundo lugar, o exame de Ordem é um instrumento de proteção social útil a todo aquele que tem ou por ventura venha a ter de recorrer aos serviços de um advogado. Ele é uma forma de assegurar que os conhecimentos jurídicos serão aplicados aos casos concretos exclusivamente por profissionais habilitados, que sabem o que é pertinente ao direito e, sobretudo, que não virão gerar a seus clientes danos ainda maiores do que aqueles que eles procuram sanar precisamente recorrendo à assistência de um causídico.

Em suma, juntos, esses dois argumentos e a má procedência da proposta a que eles se opõem, demoveriam, em princípio, qualquer chance de se levar a sério a ideia de extinguir o exame de Ordem.

Não obstante, parece-nos que há certo número coisas que não se evidenciam nesses argumentos e que há certo número de argumentos poderiam ser formulados em sentido contrário. É o que faremos a seguir, não obviamente para apoiar nenhum deputado ou projeto de lei, mas simplesmente para problematizar algumas coisas que, em geral, estamos acostumados a tomar como certas, embora talvez não o sejam tanto, a exemplo dos dois argumentos mencionados acima.

Uma das premissas que, em geral tomamos como verdadeira, mas que nos parece suscetível de problematização é a afirmação de que “o exame atesta a aprendizagem”. De um lado, vários fatores circunstâncias podem interferir na transferência dos saberes, no momento do “saque” do conhecimento adquirido pelo examinando, que se opera precisamente por meio do exame, sem que haja garantia de que em ocasiões futuras reais os padrões de desempenho serão mantidos. De outro, existe o problema da conversão ou da troca do saber adquirido em uma simbologia que seja simples o suficiente para que toda relação entre pergunta e resposta seja traduzida em um enunciado e um pequeno rol de opções de múltipla-escolha, sendo que as escolhas feitas aí precisam ser simbolizadas de forma ainda mais simples, por meio do registro em uma folha de gabarito. Portanto, uma dupla redução nos parece implicada nessa conversão: não apenas o saber dos indivíduos tem de ser reduzido até o ponto de caber em certa escala – o que acontece, aliás, independentemente de qual seja a escala –, mas a própria realidade da prática profissional e o saber científico tradicionalmente constituídos são reduzidos a uma escala inverossímil (que em geral vai de 0 a 10). Contudo, nada disso é propriamente o que está em jogo.

Se a observarmos a partir de seus efeitos, percebemos que a ideia de que “o exame comprova a aprendizagem” acaba sendo invertida no dia-a-dia das práticas educacionais. Na origem, a ideia parece implicar uma antecedência da aprendizagem em relação ao exame. O que imagina o examinador é que o examinando primeiro aprendeu e só depois veio se submeter às exigências do exame. O exame seria, assim, uma atestação da existência de certo aprendizado, cujo transcurso teria se dado anteriormente ao exame e que, em princípio, excederia aquilo que é aferido no exame. Este só apareceria no fim, a posteriori, depois da aprendizagem.

Todavia, o conhecimento prévio da existência do exame e das suas exigências específicas por parte das instituições de ensino conduz, na prática, a uma inversão desses fatores, de modo que o exame passa, na prática, a anteceder, ou a predominar ante a aprendizagem. Tendo em vista que a aprovação no exame é assumida como critério legítimo para ranquear os egressos, também as faculdades são ranqueadas em função desse mesmo critério. Produzir o resultado, a aprovação no exame, torna-se assim o que há de mais importante, mais importante até mesmo do que propiciar condições para a aprendizagem. A eventualidade de uma reprovação no exame pesa sobre as costas de todos como “o mais pesado dos pesos”; não é só a honra do nome o que está sob pressão, sobretudo, o medo cumpre sua função no governo das condutas, mantendo a todos em estado de constante ameaça. Por aí, poder-se-ia falar do caráter soberano do exame de aprendizagem, das semelhanças entre o Leviatã hobbesiano e as instâncias avaliadoras (OAB, MEC, CAPES, etc.), mas não temos a intenção de ir tão longe.

Em resposta a essa pressão, todo o trabalho de concepção e execução dos projetos pedagógicos dos cursos, as ementas, as bibliografias, os planos de ensino, as atividades complementares, enfim, praticamente todos os aspectos e momentos da formação ofertada passam a girar em torno desse eixo fundamental que é a produção do resultado final positivo no exame. Na ordem de importância, mais do que aprender, ou mesmo antes de aprender, é preciso passar no exame. Daí que o investimento feito no aprimoramento das condições de aprendizagem seja quase que integralmente direcionado à preparação para o exame, na forma de aulas específicas, apostilas “bizuradas”, provas simuladas, plantões de correção, etc. Foi dessa forma que uma lógica de ensino-aprendizagem que outrora restringia-se aos cursinhos preparatórios para concursos veio a se instalar no seio da maioria das instituições de ensino superior que pretendem hoje ter o prestígio de uma faculdade de direito. Por causa do exame, parecemos habitar, cada vez menos, instituições de ensino e aprendizagem e, cada vez mais, instituições de avaliação.

Em suma, nesse sentido, o exame não favorece a aprendizagem, pelo contrário, ele se torna um obstáculo a ela e à liberdade de ensinar e de aprender. E mais do que isso, e como prova disso, o exame vem cumprir um papel central em um dispositivo de governo pelo medo que incide sobre o campo educacional, o qual, ademais, é reconhecidamente menos eficaz do que outras práticas de governo que enfocam os meios da motivação e da premiação.

Mas além de atestar a aprendizagem e de servir de critério para ranquear os indivíduos, em tese, o exame ainda se presta a nos assegurar contra os riscos decorrentes de uma eventual atuação de profissionais não habilitados. Assumindo que o exercício de certas profissões implica um grau maior ou menor de risco, o exame funciona como um mecanismo de gestão de riscos. No caso, tem-se em vista minimizar o potencial de dano contido na utilização leiga de conhecimentos reservados exclusivamente a profissionais devidamente capacitados para tal. Ocorre que não é o exame que assegura o monopólio dos “profissionais capacitados”. O que assegura que só os “profissionais competentes”, só os “melhores profissionais”, sobrevivam é uma “seleção natural”, que é feita espontaneamente pelo mercado de trabalho – em condições de livre comércio – e que acontece necessariamente depois do exame.


Talvez o potencial de dano da utilização leiga de conhecimentos técnicos não seja assim tão elevado. Não a ponto de justificar a instauração de um exame que procede sistematicamente à degola de cerca 85% de um sub-contingente populacional, a massa de estudantes que já investiu quantias consideráveis de tempo e de dinheiro na aquisição de um capital humano que não dará retorno, porém, enquanto seu portador não for atestado pela entidade de representativa da categoria. Talvez o dano atual produzido sobre 100% desse sub-contingente populacional (os estudantes), afora aqueles que tiveram de se encarregar de viabilizar, ao longo desses anos, que a formação daquele capital humano correspondesse quase que estritamente àquilo que era exigido pelo exame (os professores), possa ser considerado, no mínimo, tão grave quanto aquele que é eventualmente ocasionado pela atuação de profissionais não autorizados, ou seja, profissionais que ficaram aquém da linha divisória entre os que estão e os que não estão autorizados a exercer aquela profissão.

Se isso faz sentido, podemos dizer que o exame não cumpre apenas, nem primeiramente, uma função no que concerne a nos proteger de riscos. Ele se presta, antes, a criar distinções, a estabelecer hierarquias, rankings, classificações, a definir critérios de exclusão, de um lado, e privilégios, de outro, a motivar a competição e a insuflar a concorrência e o individualismo, anulando assim todas as formas de cooperação que poderiam lhe contrapor alguma forma de resistência. E tudo isso graças ao impulso fundamental promovido por um Leviatã pedagógico, composto de algumas dezenas de questões, que não entende outro idioma senão o do medo, da ameaça e da pressão. No final das contas, talvez não seja tão má a ideia de pôr fim ao exame da Ordem. Isso, entretanto, não será possível enquanto não se puser fim à ordem do exame.

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