09 dezembro 2016

Direitos sociais: porque o buraco é mais em baixo

Alterar os direitos sociais - como normas da previdência ou das formas mais flexíveis de contratação e demissão - implica em efeitos diversos nos diferentes setores sociais. Considerando as diferentes classes de trabalhadores e os níveis de desgaste físico e mental que o trabalha acarreta, é de se pressupor que haverá um tipo de consequência gravosa para cada tipo de trabalho prestado: trabalhos mais físico-intensivos significam desgastes a nível de estrutura óssea e muscular, enquanto a labuta de caráter técnico implica consequência a níveis de cansaço mental, quando não ocorrem efeitos dos dois tipos, simultaneamente. O fato é que o trabalho não é uma atividade de lazer, embora alguns até advoguem a tese de que é prazeroso: como dizem os portugueses, "trabalho é trabalho, e conhaque é diversão".

O fato é que as recentes reformas levadas a cabo na República brasileira fazem parte de um antigo debate sobre a sustentabilidade de um modelo de proteção social herdado da influência europeia de regulamentação da atividade produtiva executada pelos trabalhadores: longe de considerá-los como coisa, o legislador constituinte originário os dotou de uma série de garantias que integram um núcleo duro de um projeto bem mais arrojado de defesa de direitos: a incorporação do projeto político de direitos humanos num cenário de uma economia globalizada significaria o estabelecimento de standars mínimos de proteção contra os avanços do poder econômico: ao mesmo tempo em que se privilegiaria o valor social da iniciativa privada (com a manutenção da função social das empresas: vagas de trabalho), se protegeria o direito fundamental de livre iniciativa (função econômica da empresa: o lucro). Tudo isso numa tentativa de construção daquilo que Norberto Bobbio classificou e defendeu como liberalismo social.

As bases dessa teoria, conforme aventadas no parágrafo anterior, visam proteger o caráter produtivo crescente do sistema de produção, mediante um papel social a ser desenvolvido pela empresa: a responsabilidade social na condução dos negócios abrangeria não apenas o meio ambiente social, mas também acarretaria uma preocupação com o meio ambiente natural, numa lógica de desenvolvimento sustentável, com o crescimento controlado da exploração da mão-de-obra e da proteção da natureza, respectivamente. Além disso, condições de preparo da classe trabalhadora integraria um conjunto de ações de natureza cultural a serem incentivadas pelo Estado, por meio da promoção da ideia de escolarização e esforço pessoal para o desenvolvimento da melhores aptidões de cada trabalhador, preparando-os para a vida cidadã e para o mercado do trabalho - como funções básicas da Educação/escolarização - obrigação não só do Estado, mas da sociedade civil organizada.

Entretanto, a nova investida do capital financeiro que, se aproveitando do momento de crise mundial criada exatamente pela falta de regulamentação de sua atividade ao redor do globo, vem criando obstáculos que se fazem sentir, antes de tudo, na vida social dos trabalhadores e suas famílias. A carga tributária, a limitação de gastos sociais (decorrentes dos falidos programas de austeridade, que já não funcionaram nos países europeus) e os constantes avanços tecnológicos que vêm exigindo uma constante readaptação da mão-de-obra aos novos padrões de exercício das atividades laborais têm tornado impossível àqueles que ocupam posições de marginalidade dentro do sistema econômico de produção capitalista global acompanhar as mudanças que se operam numa escala frenética. Associado a isso, uma nova filosofia - a colaboracionista, que transmuta o empregado/trabalhador num có-participe da produção, por uma nova forma ideológica designativa, que o renomeia como "colaborador" - associada ao antigo e obscuro conceito de meritocracia - numa sociedade em que privilégios são herdados, passados de "pai para filho" com raras exceções que confirmam a regra -, vem fragilizando os conceitos elementares de exploração e reificação que derivam da história dos sistemas produtivos.

Dessa maneira, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que o maior desafio para as atuais gerações passa por uma nova conceituação do que vem a ser "trabalho" como categoria, e qual papel real (e não apenas simbólica ou imaginária) essa atividade irá representar para as atuais e futuras gerações. É óbvio que, como destacado anteriormente, os efeitos desse novo tipo de regulamentação serão sentidos de maneira diversa pelos diferentes tipos ou categorias de trabalhadores: enquanto uns poderão esconder o seu desgaste com o uso de fármacos "milagrosos" que escondem o desgaste psicológico e mental de um trabalho cada vez mais competitivo e de valor tecnológico agregado, outros terão que definhar e aguardar silenciosamente pelo momento em que, desnecessários para o atual sistema de exploração do trabalho físico, só lhe restarão duas opções: a morte digna, pelo desgaste físico, ou a morte "insidiosa" à custa dos benefícios previdenciários que poderão fazer jus, porque não tiveram a "dignidade de morrer de tanto trabalhar".

Ainda, o deslocamento desse debate das ruas para as academias representa uma falha na formação de intelectuais orgânicos, responsáveis pela articulação de movimentos sociais, junto à falência do sistema representativo sindical que perdeu poder frente às novas formas atípicas de contratação laboral. O sistema produtivo, como é evidente, continua contornando as dificuldades que lhes são apresentadas pela regulamentação protetiva do mercado de trabalho, enquanto a pauta política, controlada não apenas pela arrogante classe intelectual e pela despolitizada classe média continua a ignorar os direitos daqueles que compõem as fileiras dos trabalhadores miseráveis deste país. Nesse mesmo sentido, convém relembrar que, mesmo em regimes ditatoriais ou déspotas, sempre há uma parcela de conivência e legitimidade do poder - que não vive somente mediante o uso da força. Mas. diante das injustiças sociais praticadas de maneira incessante e do crescimento da impunidade que atinge e privilegia os setores dominantes da sociedade brasileira (tanto das grandes fortunas, quanto dos grandes burocratas que se locupletam desse sistema de credulidade e abuso de prerrogativas), há o crescente descontentamento e deslegitimação do sistema legal, que impulsiona milhares de pessoas ao descumprimento das normas jurídicas e dos valores mínimos de uma sociedade que se propugna a ser "livre, solidária e fraterna".

Portanto, uma defesa sistemática dos direitos sociais é a busca de um mínimo existencial que não se confunde com a simples reprodução do capital humano, mas de uma contrapartida que se concretize em direitos que protegem o exercício de um trabalho decente e uma vida digna. Sem a defesa desses valores, volta-se ao período em que a oferta da alimentação garantidora da sobrevivência passa a ser legitimadora do exercício do trabalho, como ocorria na escravidão e na percepção de que, pelo menos, há o que comer.

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