04 dezembro 2015

Impeachment: o malabarismo pan-hermenêutico e a segurança da Democracia

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acatou um dos pedidos de impedimento que tramitam naquela Casa legislativa, contra a atual Presidente da República Federativa do Brasil. Acusam a atual gestão de ter praticado a famigerada "pedalada fiscal" e demandam a sua responsabilização por ilícito orçamentário. Como é evidente nas redes sociais, o descontentamento de uma grande parcela da população embala o sonho de se retirar a Chefe do Executivo do cargo para o qual ela foi legitimamente eleita em 2014.

Por uma razão metodológica, primeiramente, custa-nos analisar o aspecto jurídico do pedido de impeachment, que se baseia no descumprimento da lei orçamentária. Após, revelar os contornos políticos da questão, no que toca à prática e vivência da Democracia - com a nítida noção que temos algo a "Temer". Só assim, poderemos proceder a um interregno sociológico que elucide um dos mais interessantes fenômenos da Democracia brasileira neste século XXI: a explosão do neoconservadorismo, associado à tomada de consciência sobre o papel da participação social. 

Dessa forma, precisamos interpretar o caso conforme as regras jurídicas vigentes, pois trata-se de um caso que deriva diretamente de uma perscrutação não apenas da Constituição Federal, mas da Lei 1.079 de 1950 (que define os crimes de responsabilidade). Seguiremos, pois, as lições do jurista Lênio Streck, que discorre sobre a impossibilidade de impeachment sobre casos ocorridos em mandato anterior. Assim, embora esses dois dispositivos regulem a responsabilidade criminal do Chefe de Governo, sobre o cumprimento da lei orçamentária, eles devem ser interpretados restritivamente, por duas razões interligadas: trata-se de norma cogente, pertencente ao campo das investigações didáticas do Direito Público, e cuidam da definição de tipos penais, que também impossibilitam a interpretação jurídica in malam partem

Como a Lei (de 1950) que define os tipos penais é anacrônica em relação à Constituição Federal, silencia sobre a responsabilidade do(a) Presidente da República em caso de reeleição. Vez que a Lei Complementar 101/2000 não estabelece nenhum critério sobre a possibilidade de responsabilização por crime fiscal no caso de reeleição, estamos diante de um caso sui generis, que impossibilita a decretação do impeachment. Poderia a lei ser aplicada para um fato jurídico já consumado, sem que isso estivesse explicitamente previsto no texto normativo? Em matéria penal, não. É importante observar o cânone do Direito Penal, corolário do princípio da legalidade: o princípio da reserva legal - os crimes tem uma regulamentação anterior ao fato praticado pelo agente.

Mesmo que admitamos a possibilidade da existência do crime, devemos fazer o seguinte questionamento: houve dolo? E se tiver havido a intenção de cometer o delito, quem é o agente do delito? Essas duas questões só podem ser abordadas mediante a instauração de um processo - de um devido processo legal, com todos os seus elementos (contraditório, ampla defesa e afins). O que nos leva à conclusão de que ainda seria necessário avaliar a culpabilidade da Presidente, dos membros de seu gabinete e dos agentes políticos e administrativos envolvidos no evento, antes de jogarmos confetes à decisão de admissibilidade do processo pelo Sr. Eduardo Cunha.

No que respeita à conjuntura política do País, é-nos óbvia a constatação de que houve um desvio ideológico na atuação do atual governo. Decorrente da direta associação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) com o Partido do Movimento Democrático do Brasil (PMDB), no plano prático, várias críticas podem ser colhidas em diversas áreas: desde a Educação até a Saúde, passando pela modificação das normas previdenciárias, afetando a segurança social de todos os brasileiros. Muito se pode tecer sobre o desvirtuamento do PT, desde sua linha política original, até o presente momento - daí a reação legítima de Hélio Bicudo, um de seus fundadores, à qual se pode somar o rompimento interno que deu lugar ao surgimento do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Essa viragem ideológica e pragmática foi fruto daquilo que se chama "governabilidade", impondo ao partido uma aliança nefasta que, agora, dá sinais de um desgaste essencial nos seus fundamentos estruturantes.

Aliada a isso, visualizamos que a pressão dos veículos de comunicação social e dos mercados (interno e externo) reavivaram as tensões sociais decorrentes da regulação jurídica nacional que, contrariando os interesses por acumulação e manutenção de privilégios das oligarquias regionais e dos grupos econômico-financeiros internacionais, converteu-se numa arma de oposição impiedosa e irresponsável contra o atual Governo. Não é incomum encontrar posicionamentos que são, no mínimo, constrangedores para os membros da grande mídia privada nacional, como aqueles professados por âncoras de jornais televisionados, que apoiaram de maneira incondicional o Sr. Eduardo Cunha, antes e depois da admissão do pedido de impeachment

Acuados em suas políticas públicas sociais, os integrantes do atual Governo optaram por retroceder nas conquistas relativas aos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), com vistas à continuidade no Poder. Nada de louvável nisso: perderam significativo apoio que obtiveram junto à base política da esquerda brasileira e, ao mesmo tempo, prejudicaram a legitimidade de sua governança, perante os milhões de pobres e miseráveis que apostaram em mudanças que estendessem e viabilizassem os direitos fundamentais sociais insculpidos na Constituição Federal de 1988. Ainda, a majoração das contribuições sociais (como a CIDE sobre os combustíveis) e toda outra forma de intervenção do Estado em assuntos econômicos (afetando o consumo da população e os interesses de mercado) passam a ser consideradas "levianas" (para relembrar o mote do irresignado perdedor das eleições de 2014, Aécio Neves). 

Nesses termos, temos que explicitar que são integrantes do PMDB tanto o Presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, quanto o do Senado Federal, Renan Calheiros e que, abaixo de Dilma Rousseff, encontra-se ninguém mais, ninguém menos que Michel Temer - o eterno candidato à Presidência da República do partido que não possui nenhum Presidente diretamente eleito pelo povo. Você conhece a história política (frustrada) desse sujeito? Não? Pois investigue e veja por quantos anos ele alimentou o desejo de ser o Chefe de Estado brasileiro. Depois, avalie a opção pela retirada da atual Presidente e responda: há ou não uma tentativa do PMDB de ter um de seus membros no Gabinete do Planalto (e desta vez, sem a necessidade de que o titular do cargo morra). Qual é o nome dessa manobra, em Ciência Política? Como caso comparativo, tente investigar como andava o País, durante a gestão de seu correligionário José Sarney.

Ainda assim, a componente neoconservadora dispõe de uma tradicional crítica a todo tipo de governo que atue de maneira "populista" junto à classe trabalhadora. No que toca a isso, preferem uma abordagem "elitista" que, obscurecendo as finalidades do Direito Positivo brasileiro, dispostas no artigo 3º do Texto Maior, apostam em práticas neoliberais de (des)controle da Economia e de fortalecimento das desigualdades sociais e regionais - com embasamento em argumentos praxeológicos insustentáveis no plano da atual conjuntura do sistema mundo de produção capitalista. O reflexo disso pode ser constatado nas manifestações de ódio que reverberaram nas ruas, nos "panelaços" seletivos e nas redes sociais, com direito (sic) a pedido de intervenção militar e coisas do gênero, que colocaram por terra o mito reinante do "brasileiro cordial".

Por fim, precisamos ressaltar que, desde o início do atual mandato, todas as forças políticas contrárias (não contraditórias, mas absolutamente contrárias) ao atual Gabinete lutam com o objetivo de invalidar a decisão da maioria da população, diante da recondução da Presidente. A continuidade da Democracia representativa semi-direta supõe a força do voto secreto, universal e periódico (esse mal necessário; o pior dos regimes, mas que não encontra substituto melhor; essa força que obstaculariza a utópica e desejada sociedade anarco-comunitária de seres iluminados, racionais e solidários). Precisamos falar de revanche de Eduardo Cunha e de seus acólitos do PMDB? Supomos que não, pois, neste caso, parece-nos que se apdosa de maneira inédita o brocardo romano "in claris cessat interpretatio"...

***
P.S.: Enquanto isso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) segue promovendo sua política pública de Educação, com dois novos instrumentos pedagógicos: cassetete e gás pimenta. E você aí, pedindo intervenção militar, impeachment e não sei mais o quê. Mas isso merece outra postagem, não é mesmo?


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