20 junho 2013

O "Gigante acorda": acordou para o que?

Nas últimas duas semanas, temos assistido a um fenômeno bastante interessante no Brasil: insurgências em diversas capitais brasileiras, que colocaram o povo na rua, contra os interesses dos governos de Estados e municípios. Houve também repercussão nacional, quando a Presidente da República, senhora Dilma Rousseff foi vaiada no jogo de abertura da Copa das Confederações. Some-se a isso a manifestação inaugural, na cidade de São Paulo, que desencadeou o processo, exatamente no centro da força econômico-financeira do País.

Mas existe um movimento político organizado? Onde foram organizadas essas manifestações? As informações passadas pelas empresas de comunicação privadas estão sendo manipuladas contra os manifestantes?

A primeira informação relevante acerca das manifestações é que a maioria é composta por donas de casa, trabalhadores da iniciativa privada, funcionários públicos, desempregados, estudantes e professores universitários. É uma massa disforme, não organizada de pessoas que, movidas por vários interesses, convergiram para formar uma multidão de indignados com os mesmos desafios de sempre: inflação, desemprego, corrupção, ineficiência do Estado diante das políticas públicas relativas à saúde, transportes, educação, infraestrutura dentre várias outras.


Um fator também relevante na mobilização popular é óbvia: o fato de o Brasil estar em foco, diante da realização da Copa das Confederações, orquestrada pela FIFA. No País do futebol, alguém reportou, seria natural que os brasileiros aproveitassem o momento para protestar. E protestam, inclusive, diante de diversas exigências relativas a deveres impostos ao governo brasileiro, relativos à segurança e direitos sobre produtos e serviços prestados aos espectadores nos estádios, e assim por diante. Diante dos olhos de milhões de brasileiros, viu-se o governo federal e dos Estados-membros dobrarem-se diante das exigências de tal organismo internacional, além, obviamente, dos elevados gastos públicos com a construção de estádios de futebol e outras obras - todas atrasadas, super-faturadas e, como se declara à boca miúda, objetos de fraudes com desvio de verbas.

Essa multidão organizou-se nas mídias sociais digitais, notadamente, no Facebook e Twitter. A versatilidade dessas mídias, que podem ser acessadas da maioria dos dispositivos de comunicação móvel (telefones celulares, tablets e afins) favoreceu a organização e a disseminação de diretrizes aos manifestantes. Os encontros têm sido marcados em páginas, onde o manifestante consegue não apenas as informações sobre as passeatas, como também arregimenta a participação de colegas e familiares, aos eventos programados em locais públicos.

O interessante desse suporte digital é que, por comportar conteúdo audiovisual, ele tem servido, também, como veículo de comunicação social, demonstrando a truculência com que as autoridades públicas têm tratado os manifestantes. Não é incomum, sendo correto afirmar que abundam fotos e vídeos sobre ataques de ambos os lados - e a violência surge, aqui, como um tema também a ser discutido.

De fato, tanto os governos, quanto os insurgentes alegam que há violência: os manifestantes são acusados de depredar o patrimônio público, além de causar transtorno ao trânsito e aos demais membros da população; os governantes são acusados de usar a força policial para amedrontar e agredir a população. Importante, contudo, é ressaltar o seguinte: estas manifestações são compostas por uma "panaceia" de indivíduos (uma variedade de opiniões e matizes culturais capaz de curar todos os nossos "males" sociais); dentre esses indivíduos, existem aqueles que apelam à violência, e que tem sido até controlados por outros manifestantes. O que é importa é afirmar: a violência e a depredação do patrimônio público e privado não têm sido os objetivos nem a tônica do movimento - a despeito do que temos assistido nas empresas de comunicação televisiva; o movimento tem natureza pacífica.



Quanto aos que se indignam diante disso tudo, um recado breve: esse é um fenômeno social interessante, inovador e que pode ser útil para o aprofundamento da democracia brasileira. Jorge Hélio, meu antigo professor de Direito Constitucional e, atualmente, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, fez a seguinte provocação: "Que tipo de democracia queremos? Uma democracia de manifestações pacíficas? Ou de demonstrações violentas?". Esse questionamento deve ser encarado da seguinte forma: ambas são formas qualificadas de democracia; compete ao povo escolher qual das duas prefere. E a quase-totalidade dos insurgentes escolheram manifestar-se pacificamente.

No meio disso, está a mídia tradicional, sendo acusada de selecionar as informações que são repassadas ao grande público, tendenciosamente favorecendo os interesses dos industriais e governantes. Nesse aspecto, várias são as opiniões e estudos que podem ser chamadas a explicar essa tendência da mídia tradicional, mas prefiro apelar para a seguinte: na composição da mensagem que é passada ao público, além de outros fatores, imperam tanto o sensacionalismo que movimenta os índices de audiência, quanto a óbvia falta de uma percepção sistêmica do problema. Também é cediço que sempre se opta por este ou aquele padrão editorial, que beneficie este ou aquele interesse, mas conjecturar sobre isso é abrir a discussão para um viés que, neste texto, não é a principal "linha editorial" - e o que demandaria um esforço enorme, já realizado em outros documentos lançados neste blog.



Escolhemos a subsidiariedade: aqueles que estão em contato direto com o conflito têm melhores condições de resolvê-lo e maior legitimidade para falar sobre ele. Não pode haver uma dúvida sequer: este é um movimento político, de uma sociedade civil desorganizada. Não está sendo dirigido, até o presente momento, por nenhum partido político, mas é um movimento político. Embora o significado desse termo tenha se perdido nos últimos anos, ele é também ideológico: efêmero e desprovido de essência. Como tudo o que vem se produzindo no campo do social, não há solidez de princípios, nem um foco exclusivo de atuação. Chega a congregar setores político-partidários que, tradicionalmente, são antagônicos, mas tem por mérito a re-utilização e re-significação do espaço público. É uma forma de (des)organização política: informal, autóctone e soberana.

Entretanto, é muito conveniente ressaltar o seguinte: esse movimento ainda é, e provavelmente ainda será durante muito tempo, observado com muita desconfiança pela sociedade brasileira. Não temos a tradição de nos rebelar, porque nossa capacidade política se resume à participação no processo eleitoral, que tem uma periodicidade num interstício de 02 anos. Fomos acostumados a um distanciamento das questões políticas; um ditado popular estabelece que "futebol, religião e política não se discute". Esse dizer popular revela que essas três paixões encontram-se num mesmo nível, e ajudam a compor o imaginário sentimento de pertença da população, unificada culturalmente em torno de alguns "símbolos nacionais": samba, futebol, carnaval e obediência.

Isso significa, também, que espera-se dessa insurgência um comportamento compatível com o estado de torpor que uma sociedade economicamente emergente precisa, para que possa continuar a haver o consumo de bens. É notório e, de uma certa forma, escandaloso que o sistema econômico precise limitar as manifestações populares a níveis ponderados de manifestação democrática; em recente entrevista, o Secretário-Geral da FIFA chegou a afirmar que uma Copa do Mundo organizada num país autoritário, como a Rússia, seria menos problemático do que uma organizada na Alemanha ou no Brasil, onde há democracia. Essa afirmação reconhece a complexidade das demandas sociais, consideradas atentatórias à segurança do consumo dos produto-serviço oferecidos pela FIFA; tal perspectiva teme que a visibilidade do evento seja catalizador de novos protestos e revolta populares. Mas isso também pode ocorrer numa paralização de uma categoria qualquer que, durante um dia semana, no horário comercial, bloqueie uma avenida e impeça outros trabalhadores de trafegar rumo ao trabalho, ou impedir que os consumidores se dirijam aos shopping centers (me ocorreu a origem estrangeira do termo, neste instante...). Segurança para o consumo, segurança para o lucro.

O espaço público, agora, se desloca para um outro lugar. Esse lugar é digital, virtual, mas é tão real como a extinta praça pública. Ele é composto por bits e bytes, e ainda não está completamente regulado, porque é caótico na sua composição, dinâmico na sua entropia e negentropia, e sistêmico na sua operacionalização. Todas essas caracterísitcas tornam bastante difícil um controle sobre as informações que são ali difundidas. Se é certo que um serviço possa ser bloqueado e até mesmo fechado, é também correto que outros sítios agregadores surjam, com velocidade superior à da burocracia estatal. Se as pessoas estão confinadas em seus apartamentos e casas, com cercas elétricas e sistemas privados de segurança; se a praça pública é o espaço da droga e do crime, o cidadão encontrou um novo local para as suas demandas e organização política, e tem partido desse não-lugar de volta às ruas, à praça pública. Liberdade de locomoção, liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

As empresas privadas e públicas de comunicação social continuam a ter uma maior inserção, no que pertine ao alcance de zonas rurais e nas camadas sociais sem acesso à Internet (ou que ainda utilizam-na precariamente, como fonte de informação). O que impõe aos insurgentes o desafio de transpor os limites sócio-econômicos naturalmente associados à tecnologia de informação, e de levar as informações sobre o que está ocorrendo ao resto da população.

Por fim, compete-nos avaliar duas coisas: (1) está havendo um conflito jurídico-político, no Brasil e (2) nossa democracia está amadurecendo. Nós que clamamos uma nova hermenêutica, efetuada sobre uma Constituição aberta (para utilizar a expressão de Peter Häberle), e que desejamos nos inscrever como membros de uma comunidade internacional civilizada, precisamos considerar se vamos sacrificar nossa liberdade em prol da segurança; se vamos aquietar nossas indignações e assegurar nossos interesses de mercado (sim, fazemos parte dele, pois somos produtores-consumidores de bens e serviços, e não nos resta mais nenhuma gota de hipocrisia para esconder isso). Temos que decidir, ainda, se vamos continuar vivendo numa Democracia não-democrática. Esse é o legado que temos a deixar, para a próxima geração.

Fotos e vídeos recolhidos na manifestação ocorrida hoje, na cidade de Fortaleza, registrando a violência policial patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará.

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