17 outubro 2007

Falcão para Caveira, câmbio...

Este mês, tive a oportunidade de assistir dois filmes; na verdade, um filme e um documentário, ambos sobre a violência nas favelas do Rio de Janeiro. O primeiro foi "Tropa de Elite" e o segundo "Falcão - meninos do tráfico". Depois de refletir um bocado, resolvi escrever algumas (pouco elucidativas) linhas sobre uma realidade que a maioria dos brasileiros vive nas grandes cidades brasileiras: a guerra urbana.
  • O filme
"Tropa de Elite" conta a história de alguns oficiais do Batalhão de Operações Especiais, no Rio de Janeiro; de uma forma bem hollywoodeana, a película fala sobre o treinamento, valores, cotidiano e dificuldades enfrentadas pelos policiais militares cariocas em sua jornada de trabalho - combatendo o tráfico de armas e drogas nas favelas do Rio de Janeiro; faz referência aos meses imediatamente anteriores à visita do Papa João Paulo II ao Rio, em 1997. Diga-se, de passagem, que não se está a falar de qualquer tipo de polícia; são homens com treinamento militar contra-guerrilha, com armamentos e técnicas de combate especiais.

  • O documentário
"Falcão - meninos do tráfico" retrata a vida de crianças e adolescentes que convivem com a realidade da favela; o uso de drogas, as armas, o convívio com a violência e o processo de internalização dessa violência em brincadeiras entre as crianças (produção e reprodução da violência no espaço cultural da favela), a ausência de uma estrutura social sadia - quer familiar, quer societal - e assim por diante. Por oportuno, o contexto social em que estão inseridos jovens e crianças (e toda a comunidade pobre da favela) carece das infra-estruturas que são ofertadas à minoria da população - o Estado (em sua forma "benevolente") praticamente inexiste naquele ambiente.
  • O ponto de contato
O que me chama a atenção, tanto num, quanto no outro, é o apelo ao lado humano dos personagens; embora no filme tenha-se a ligeira impressão de se estar diante d'uma história "à la Quentin Tarantino", é evidente que aqueles são fatos da vida real; no documentário, a vida como ela é, de tão cruel, levanta a suspeita sobre a veracidade dos fatos e de uma possível encenação. Nesse "balé" entre realidade e ficção, o espectador pode ser capturado por julgamentos de ordem moral e, assim ocorrendo, pode ser chamado a posicionar-se desta ou daquela forma, consoante a sua formação pessoal e sensibilidade.

De que lado ficar? Do obstinado policial - que tenta a todo custo cumprir a lei? Da criança/adolescente - o fora-da-lei, que resiste e insiste em sobreviver, custe o que custar? Bem. Aí está um julgamento de ordem moral. De um lado, a "lei e ordem" de uma sociedade capitalista que, bem ou mal, tenta realizar o seu projeto. Do outro, a criminalidade - ou o outro lado da moeda, que integra a lógica do sistema em questão (é o seu oposto).

Mas existe um ponto de contato entre as duas narrativas: a ausência de um Estado de Direito. Isso é tão notório quanto o é a ausência de qualquer estrutura democrática ou cidadã nas duas "firmas" (os falcões e os caveiras estão submetidos à hierarquia, esquema de violência e todo um conjunto de regras de comportamento - e moral - próprias). E, diga-se de passagem, encontram-se em status de guerra aberta. Esse é o cenário ou a imagem do Brasil que poucos querem ver ou pintar: um país despedaçado pela corrupção, crime organizado, máfia e todo tipo de conivência entre o dinheiro/Poder e uma pequena (ínfima) parcela da Sociedade.

Todo um conjunto de valores pode ser levantado para contrapor os interesses daquelas duas "facções"; todos querem garantir o projeto social do qual dependem; todos estão sujeitos e são prisioneiros de sua situação. Isso porque à classe social que integra aquele tipo de corporação militar tem limitadas escolhas quanto ao mercado de trabalho; num país de miseráveis, todo emprego "decente" é bem-vindo. Ao pobre favelado... quais as opções mesmo?

De uma maneira ou de outra, uma das frases mais inteligentes foi dita por uma criança (ainda poderíamos chamá-la assim?) no documentário: "Se acabar o tráfico, acaba a polícia... Os 'polícia' não ganha bastante... depende do arrego (suborno)". O que aquele ser humano ignora é que o seu maior inimigo não é "o polícia" (outra vítima do sistema); seu inimigo é a Sociedade brasileira: da forma como ela está estruturada, a existência de pessoas na condição em que o garoto se encontra é condição sine qua non para que se mantenha o status quo.

Todos os crimes ligados à opressão dos miseráveis brasileiros são conseqüências diretas da estrutura societal desenhada ao longo dos anos na República, para que a mobilidade social seja mínima e orientada aos "objetivos nacionais". É como parafrasear Michael Parenti: só existe riqueza porque existe pobreza; só existe riqueza extrema se a pobreza também for extrema. Isso me faz penar que, enquanto o Brasil estiver entre os países mais ricos do mundo (com as remessas absurdas de capital e/ou lucros para o exterior, por exemplo), a situação dessas pessoas vai continuar assim: desumana.

É chocante pensar que "trabalhar" possa significar "matar outra pessoa". Na "brincadeira" de polícia e ladrão, é exatamente isso o que significa. No final das contas, a única coisa que passa pela minha cabeça é o sinal de rádio entre a criança e o adulto:
- Falcão para Caveira. Não me mate por favor, "tou" fazendo o meu. Câmbio...
- Caveira para Falcão, estou cumprindo o meu dever. Câmbio e desligo.

Nenhum comentário:

Artigos selecionados

Supremo Tribunal Federal

Conselho Nacional de Justiça

Tribunal Superior do Trabalho

Tribunal Superior Eleitoral