13 agosto 2006

A moral existe?

Assumir posicionamentos filosóficos é negar o conhecimento enquanto verdade de vir-a-ser. Mas deve, ou melhor, deveria existir um centro moral qualquer que fosse capaz de impedir comportamentos anti-naturais contrários às idéias de preservação e conservação das espécies, por exemplo. Não parece muito lógico que a lei da seleção natural deva se aplicar à espécie humana, tendo em vista a organização do saber pela forma do conhecimento adquirido e repetido - que, em tese, indica aos humanos os caminhos a seguir ou evitar, as condutas "positivas" e "negativas" ante à vida enquanto realidade objetiva. E daí poder-se perguntar: não seria a razão humana exatamente a conseqüência da evolução, mediante os artifícios humanos da História e da linguagem, ao invés de um simples erro de cálculo biológico? Esses questionamentos são feitos à margem da noção de moral, para ao fim ser questionada a admissão de sua existência como condição à própria existência da espécie humana.

Ser espectador passivo da existência seria, grosso modo, uma forma de aceitar o mundo e suas condições naturais. Mas o ser humano revolta-se contra a natureza e a modifica, constantemente, para que esse objeto se adeqüe às suas necessidades materiais, impregnando, ainda, tudo à sua volta com noções de valor e pathos, fazendo desse mesmo objeto (o mundo) o seu lar psicológico - a noção de realidade enquanto utilidade e finalidade. Assim, a espécie humana não é espectadora passiva da realidade e sua contribuição é a semente que se prolonga no tempo e deixa registros da atividade do hommo sappiens num planeta fatalmente destinado à destruição. Assim, mesmo sabendo que a Terra é destrutível (por forças astrofísicas ou, ainda, ações desencadeadas pelo próprio homem, por exemplo, a bomba de hidrogênio), esse animal (racional) insiste em deixar sua marca biológica, espiritual e intelectual. Por que? Seria essa, também, uma condição natural? Ora, ao que parece, tudo indica que a idéia, o pensamento, enfim, o produto de uma razão direcionada tende a preservação de um movimento iniciado pelo ser humano, que se propaga e se repete no comportamento humano de forma quase compulsiva.

O que faz a idéia se propagar? O que leva o ser à repetição de um comportamento? Ambos se confundem? A metafísica, que estabeleceu o dualismo entre idéia e realidade, parece ignorar a presença de construções abstratas do mundo concreto. Mas as idéias pertencem ao mundo do real, ganham vida nas ações humanas e se propagam ao longo do tempo através do processo de "desabstração" exatamente no momento em que ficam registradas pela linguagem. Toda realidade se constrói mediante a ação abstrata das ideias - diferentemente de se poder dizer que sua realização é possível ou não. É neste contexto que se poderia defender a existência concreta da Moral, que é ação dirigida pela vontade humana na continuidade de certo tipo de comportamento, direcionado à preservação e organização de certo interesse humano. É sob esta estrutura moral que o ser racional tornou possível a própria continuidade da espécie, porque se assim não procedesse, defendendo idéias ou modelos de comportamento, esse mamífero bípede possivelmente não teria dominado o mundo. A esta altura, dois questionamentos: seria possível afirmar que um comportamento, ou melhor, uma regra moral pode ter uma causa natural? Um sentimento pode ser uma conseqüência biológica? Isole-se um pequeno agrupamento humano primitivo e veja-se como se comportam os seus elementos e chegar-se-á num ensaio de resposta acerca dessas questões. Os membros de uma comunidade qualquer - fazendo-se já uma diferenciação entre comunidade e sociedade, devido à complexidade e aparente desorganização desta última forma de agrupamento humano - tendem à organizar suas relações intersubjetivas tendo por base relações de poder e a divisão de atividades para a obtenção de resultados em tempo adequado às necessidades do grupo. O ser humano, inclusive, tem demonstrado uma aptidão ou uma condição social inegável que se repete em todos os tempos - com exceções isoladas que confirmam o que parece ser uma regra. Não seriam essas duas constatações conseqüências da vida em si considerada?

Assim, parece haver uma necessidade biológica que direciona o comportamento humano e, se o direciona a fim de dar continuidade à existência, cria as condições elementares para o surgimento de regras de conduta. Se, para garantir a perpetuação da espécie, os seres vivos devem garantir a manutenção da prole indefesa, surge a condição ideal para o estabelecimento de uma regra moral: deve-se cuidar dos mais fracos ou deve-se cuidar dos mais novos. Este exemplo já pode se candidatar a tentar explicar o surgimento de uma norma moral e d'um sentimento. Mas é tarefa de quem escreve o que pensa deixar o leitor à vontade para criar seus próprios exemplos, porque exemplificar é sempre uma castração daquele que gosta de exercitar a imaginação... Essas necessidades de ordem natural/biológica podem ser o berço da valoração humana aos fatos e acontecimentos que podem ser observados: os clãs, as tribos, as vilas que melhor administram seu contingente humano, zelando pelos mais fracos e preservando os mais velhos, podem possuir melhores condições de preservar dois dados importantes para a manutenção da força politicamente organizada, porque garante a renovação de mãos produtivas e a manutenção de valores adquiridos, respectivamente. Não seria uma tendência natural o domínio de coisas? Daí, claro, pode surgir uma deturpação de regra de conduta, que seria o domínio de um humano sobre outro humano - à semelhança do que ocorre em relação ao território e à caça, nos animais racionais e irracionais. Mas, qual a segurança destas afirmações? Não só um certo ou qualquer instinto para a definição de comportamentos, mas a perpetuação desses instintos pela seleção natural de idéias mais aptas ao objetivo primevo de todo ser: a continuação da vida, seja de forma mediata - ato de preservação, assim, comer, procurar alimento etc. -, seja de forma imediata - ato de reprodução, produzindo cultura, prole, linguagem, e assim por diante.

É óbvio que é possível uma filosofia da negação da moral. Mas rejeitá-la (a moral) e colocar a questão de sua existência em torno apenas de questões metafísicas representa um gasto de energia inútil - sendo de mais valia "perder alguns quilinhos" numa atividade ginástica qualquer. O ideal faz parte do real, uma vez que só pode idealizar mediante uma atividade filosófica, que pressupõe a existência de um ser cognoscente e um objeto cognoscível (mesmo que imaginário, figurativo ou metafísico). Isso, é claro, considerando que a realidade efetivamente existe, ou seja, de que é possível se provar que tanto este texto, como esta idéia, como a pessoa que está à digitá-lo ocupa um lugar na curva espaço-temporal, num determinado universo. A partir de outra perspectiva, tudo é possível e tudo é impossível. Se não existisse moral, não existiria mais nada - e tudo que aponta nesta direção é niilista. Não parece que caiba mais ao ser humano filosofias que neguem a sua condição primordial de percencer ao mundo animalia. O humano tem impulsos fisiológicos, bioquímicos, que importam uma condição material de existência e inter-relação. A intersubjetividade é condição da espécie humana que se condiciona pela repetição de comportamentos, criação de regras sociais com traços éticos, com reações desproporcionais de cunho emocional, primitivo. E tudo isso faz parte da discussão em torno da moral, porque este elemento pressupõe um núcleo do qual emana a tal liberdade de movimento e expressão e interação social, da qual construiu-se a noção pós-moderna de dignidade. Todos esses conceitos, claro, são puramente humanos, porque esta forma de vida chordata preocupou-se com o "encaixotamento do saber", com a procura de definições e conceitos, que pudesse tornar mais fácil a propagação de mais uma de suas criações: a idéia.

A idéia de moral é uma conquista humana - seu uso para o benefício destes mamíferos, aí é outra discussão. A importância de sua existência deve ser buscada em sinais disponíveis no mundo natural, ainda que apenas de forma especulativa, sem questionamentos de ordem metafísica - pois, neste campo, tudo é subjetivo. Saudável é, antes de colocar a questão "se existe uma moral", questionar quais seriam as conseqüências de sua inexistência.

2 comentários:

Anônimo disse...

Torquilho, como você deixa a questão em aberto, de certo ponto de vista, se você me permite um viés de pensamento, a moral é fruto, de forma resumida, de experiências humanas adquiridas com o passar do tempo. A moral não tem somente uma função castradora como muitas pessoas consideram. Creio que a moral tem uma finalidade maior de “gerência”. O moralismo é perigoso! Este abre espaço para a preservação dos paradigmas e para a reprodução de ações com ausência de reflexão.
Observe que o ser humano pensa ser eterno e que a história da humanidade se deu em condições iguais às suas, ou seja, igual ao momento que vive. Vive o aqui agora. É ai que deveria entrar a tal “gerência” pois, administrar o nosso “recipiente” de emoções e sentimentos que influenciam em nossos pensamentos não é fácil. Por isso, certamente, creio que a moral é útil como um preservador do tecido social ajudando o homem a melhor conduzir suas ações para que ele possa preservar-se de si mesmo.
Esse é um assunto é pertinente!
Abraço

MGarFil

Antônio T. Praxedes disse...

Mhauro,
O seu comentário me fornece um feedback essencial às minhas conjecturase e fico congratulado de ter recebido a sua advertência.
Sem dúvida que existe uma distância oceânica entre moral e moralismo, que, porém, faz confusão de significados no imaginário popular. Isso porque, no senso comum, há um "link" entre ambos os conceitos, que não se verifica filosoficamente.
Defender a existência da moral, enquanto elemento, torna-se ponto chave à discussão de seus efeitos concretos na vida em sociedade. Necessário se faz, então, discutir as distorções que o conceito sofre e sofreu ao longo dos séculos - veja-se a crise de ética brasileira, emblemática da situação.
Espero que a mensagem do texto desperte o interesse pelo debate em tela: se a moral existe e sabemos qual o seu fundamento, como ela interfere (negativa e positivamente) na sociedade?
Com estima,
A.T.P.

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