Deve ser curioso. E é totalmente histórico. O indivíduo chega ao banco,
ele tem dinheiro em conta, mas ele só pode sacar (se houver espécie em
caixa) o seu dinheiro, que com certeza é "muito seu" (quem há de negar?)
até um certo limite (baixo). A cor do restante do dinheiro, que
continuará a ser seu dinheiro, "muito seu, sem dúvida", o indivíduo só
verá quando e se o governo autorizar. É isso que os gregos estão vivendo
hoje e provavelmente pelas próximas semanas.
Conclusão imediata:
"Os malucos da esquerda que se apossaram do poder na Grécia estão
tomando o dinheiro de sua própria população para pagar dívidas que são
do governo. A que ponto chegaram esses doidos!..."
Sim e não.
Sim: o dinheiro está sendo tomado da população grega. Não: os doidos do
Tsipras e do Syriza são, de fato, completamente "doidos", mas não são
eles que estão tomando o dinheiro do povo grego.
Quem está
tomando o dinheiro são os credores do Estado grego, ou seja, possuidores
de enormes quantias de capital, as potências europeias, em especial, a
Alemanha, e inumeráveis capitalistas privados que, na era da
ciber-vigilância generalizada gozam de um conveniente anonimato
pragmático. O que Tsipras está fazendo é reter o dinheiro que circula na
Grécia sob controle do Estado grego, para que este mantenha algum poder
de barganha. Do contrário, o indivíduo sacaria do caixa de um banco
grego para, na próxima esquina, entregar seu dinheiro "muito seu", via
consumo, a um capital internacionalizado ou europeu. Em condições
“normais”, tudo correria bem. Acontece que, há muito tempo, este capital
internacionalizado, que quer que coisas como o Syrisa desapareçam, tem
tentado -- como quem tenta deliberadamente perder uma partida de War --
sair da Grécia, isto é, dos bolsos da população grega.
Do ponto de
vista do capital, a Grécia deixou de ser lucrativa há muito tempo.
Porém, ainda há alguns dividendos por lá, e não pode haver resto!
Tsipras é um maluco nessa história porque, ao invés de cadenciar o
abate, vem querer pôr em questão, nos acréscimos, a regra do jogo. Numa
situação em que ou perdemos tudo agora, ou perdermos tudo um pouco mais à
frente -- e sabendo, não só com matemática cantoriana rudimentar, que
este segundo infinito pode ser maior do que o primeiro -- o presente
gesto do governo do Syrisa põe em questão aquilo para que vínhamos
tentando chamar atenção por meio das aspas. A questão é: o seu dinheiro é
mesmo “seu” ou “muito seu"?
Ao sair de um banco sem ter sacado
dinheiro que “lhe pertence”, um indivíduo grego experimenta, no dia de
hoje, uma curiosidade histórica. Essa experiência evidencia que, se de
acordo com a ficção jurídica liberal, o dinheiro é propriedade do
indivíduo, do ponto de vista efetivo ele é apenas um sinalizador da
posição hierárquica que o indivíduo ocupa na rede das relações
socioeconômicas. De modo cada vez mais óbvio e imediato, o dinheiro não é
a cédula ou a moeda que pode estar ou não na carteira de um grego neste
momento. De modo cada vez mais claro, o dinheiro é uma senha de acesso,
que esse grego pode ou não ter na memória, mas que, em todo caso, pode
autorizá-lo a consumir e, em especial, dependendo de quanto o tal grego
tenha, a consumir o próprio consumo, fazendo deste algo que é produtivo,
mas que não produz nada a não ser o próprio dinheiro. Trata-se de uma
senha que permite ao indivíduo consumir o próprio dinheiro, isto é,
‘investir’ e, assim, reproduzir o dinheiro, sem que nada de fato tenha
sido produzido.
Em que medida o dinheiro do grego que foi hoje
ao banco “lhe pertence”? Em que medida esse dinheiro já “lhe pertencia”
antes e agora não “lhe pertence” mais? Como estar de posse de uma senha
que me autoriza a entrar ou não entrar em uma relação pode ser algo que
me “pertence”? Se o indivíduo sai agora de um banco com todo o
dinheiro que “lhe pertence” em ‘cash’, para onde vai esse dinheiro? Duas
opções: ou vai para debaixo do colchão, ou vai para o consumo,
e daí para o capital, que não tem mais a menor dúvida em se retirar de
circulação no mercado grego.
Qual é a loucura de Tsipras? Ele
está tentando puxar o freio-de-mão. Ele quer produzir uma parada, que só
pode assumir agora a forma de uma questão que inflexiona a história. A
questão é: a quem pertence mesmo o “dinheiro”?
Mais sobre o assunto no Opera Mundi: http://operamundi.uol.com.br/…/tsipras+anuncia+restricoes+a…
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