Recentemente,
uma polêmica que na verdade não é nova foi reacendida. O presidente da Câmara
dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), trouxe à pauta o
projeto de lei 7.116/2014, que visa extinguir o tradicional exame da Ordem dos
Advogados do Brasil – OAB. A medida teria em vista o combate à burocratização,
ao corporativismo e à corrupção que, segundo Cunha, maculam a importante
instituição. A despeito da indignação de “meritocratas”, de um lado, e da
euforia de “mediocratas”, do outro, ninguém parece ter levar realmente a sério
a proposta do deputado, conhecido por seus excessos, de modo que tem
prevalecido a opinião dos próprios juristas acerca do assunto, cujo cerne pode
ser resumido em dois argumentos.
Em primeiro lugar,
a aprovação no exame de Ordem atesta que o bacharel adquiriu os saberes
jurídicos necessários ao exercício da advocacia, constituindo uma maneira
legítima e eficaz de ranquear qualitativamente os egressos dos cursos de
direito. Trata-se, assim, de um “filtro qualitativo”, ademais, imprescindível
haja vista a multiplicação do número de faculdades de direito no país, que se
avoluma ano a ano, tornando cada vez mais difícil a fiscalização governamental.
Consequência direta disso é a exponenciação da quantidade de egressos, dos
quais não mais do que em média 15% consegue a aprovação no exame de Ordem.
Em segundo lugar,
o exame de Ordem é um instrumento de proteção social útil a todo aquele que tem
ou por ventura venha a ter de recorrer aos serviços de um advogado. Ele é uma
forma de assegurar que os conhecimentos jurídicos serão aplicados aos casos
concretos exclusivamente por profissionais habilitados, que sabem o que é
pertinente ao direito e, sobretudo, que não virão gerar a seus clientes danos
ainda maiores do que aqueles que eles procuram sanar precisamente recorrendo à
assistência de um causídico.
Em suma, juntos,
esses dois argumentos e a má procedência da proposta a que eles se opõem,
demoveriam, em princípio, qualquer chance de se levar a sério a ideia de
extinguir o exame de Ordem.
Não obstante,
parece-nos que há certo número coisas que não se evidenciam nesses argumentos e
que há certo número de argumentos poderiam ser formulados em sentido contrário.
É o que faremos a seguir, não obviamente para apoiar nenhum deputado ou projeto
de lei, mas simplesmente para problematizar algumas coisas que, em geral,
estamos acostumados a tomar como certas, embora talvez não o sejam tanto, a
exemplo dos dois argumentos mencionados acima.
Uma
das premissas que, em geral tomamos como verdadeira, mas que nos parece
suscetível de problematização é a afirmação de que “o exame atesta a
aprendizagem”. De um lado, vários fatores circunstâncias podem interferir na
transferência dos saberes, no momento do “saque” do conhecimento adquirido pelo
examinando, que se opera precisamente por meio do exame, sem que haja garantia
de que em ocasiões futuras reais os padrões de desempenho serão mantidos. De
outro, existe o problema da conversão ou da troca do saber adquirido em uma
simbologia que seja simples o suficiente para que toda relação entre pergunta e
resposta seja traduzida em um enunciado e um pequeno rol de opções de
múltipla-escolha, sendo que as escolhas feitas aí precisam ser simbolizadas de
forma ainda mais simples, por meio do registro em uma folha de gabarito.
Portanto, uma dupla redução nos parece implicada nessa conversão: não apenas o
saber dos indivíduos tem de ser reduzido até o ponto de caber em certa escala –
o que acontece, aliás, independentemente de qual seja a escala –, mas a própria
realidade da prática profissional e o saber científico tradicionalmente
constituídos são reduzidos a uma escala inverossímil (que em geral vai de 0 a
10). Contudo, nada disso é propriamente o que está em jogo.
Se
a observarmos a partir de seus efeitos, percebemos que a ideia de que “o exame
comprova a aprendizagem” acaba sendo invertida no dia-a-dia das práticas
educacionais. Na origem, a ideia parece implicar uma antecedência da
aprendizagem em relação ao exame. O que imagina o examinador é que o examinando
primeiro aprendeu e só depois veio se submeter às exigências do exame. O exame
seria, assim, uma atestação da existência de certo aprendizado, cujo transcurso
teria se dado anteriormente ao exame e que, em princípio, excederia aquilo que
é aferido no exame. Este só apareceria no fim, a posteriori, depois da aprendizagem.
Todavia,
o conhecimento prévio da existência do exame e das suas exigências específicas
por parte das instituições de ensino conduz, na prática, a uma inversão desses
fatores, de modo que o exame passa, na prática, a anteceder, ou a predominar
ante a aprendizagem. Tendo em vista que a aprovação no exame é assumida como
critério legítimo para ranquear os egressos, também as faculdades são
ranqueadas em função desse mesmo critério. Produzir o resultado, a aprovação no
exame, torna-se assim o que há de mais importante, mais importante até mesmo do
que propiciar condições para a aprendizagem. A eventualidade de uma reprovação
no exame pesa sobre as costas de todos como “o mais pesado dos pesos”; não é só
a honra do nome o que está sob pressão, sobretudo, o medo cumpre sua função no
governo das condutas, mantendo a todos em estado de constante ameaça. Por aí,
poder-se-ia falar do caráter soberano do exame de aprendizagem, das semelhanças
entre o Leviatã hobbesiano e as instâncias avaliadoras (OAB, MEC, CAPES, etc.),
mas não temos a intenção de ir tão longe.
Em
resposta a essa pressão, todo o trabalho de concepção e execução dos projetos pedagógicos
dos cursos, as ementas, as bibliografias, os planos de ensino, as atividades
complementares, enfim, praticamente todos os aspectos e momentos da formação
ofertada passam a girar em torno desse eixo fundamental que é a produção do
resultado final positivo no exame. Na ordem de importância, mais do que
aprender, ou mesmo antes de aprender, é preciso passar no exame. Daí que o
investimento feito no aprimoramento das condições de aprendizagem seja quase
que integralmente direcionado à preparação para o exame, na forma de aulas
específicas, apostilas “bizuradas”, provas simuladas, plantões de correção,
etc. Foi dessa forma que uma lógica de ensino-aprendizagem que outrora
restringia-se aos cursinhos preparatórios para concursos veio a se instalar no
seio da maioria das instituições de ensino superior que pretendem hoje ter o
prestígio de uma faculdade de direito. Por causa do exame, parecemos habitar,
cada vez menos, instituições de ensino e aprendizagem e, cada vez mais,
instituições de avaliação.
Em
suma, nesse sentido, o exame não favorece a aprendizagem, pelo contrário, ele
se torna um obstáculo a ela e à liberdade de ensinar e de aprender. E mais do
que isso, e como prova disso, o exame vem cumprir um papel central em um
dispositivo de governo pelo medo que incide sobre o campo educacional, o qual,
ademais, é reconhecidamente menos eficaz do que outras práticas de governo que
enfocam os meios da motivação e da premiação.
Mas
além de atestar a aprendizagem e de servir de critério para ranquear os indivíduos,
em tese, o exame ainda se presta a nos assegurar contra os riscos decorrentes
de uma eventual atuação de profissionais não habilitados. Assumindo que o
exercício de certas profissões implica um grau maior ou menor de risco, o exame
funciona como um mecanismo de gestão de riscos. No caso, tem-se em vista
minimizar o potencial de dano contido na utilização leiga de conhecimentos
reservados exclusivamente a profissionais devidamente capacitados para tal.
Ocorre que não é o exame que assegura o monopólio dos “profissionais
capacitados”. O que assegura que só os “profissionais competentes”, só os
“melhores profissionais”, sobrevivam é uma “seleção natural”, que é feita
espontaneamente pelo mercado de trabalho – em condições de livre comércio – e
que acontece necessariamente depois do exame.
Talvez
o potencial de dano da utilização leiga de conhecimentos técnicos não seja
assim tão elevado. Não a ponto de justificar a instauração de um exame que
procede sistematicamente à degola de cerca 85% de um sub-contingente
populacional, a massa de estudantes que já investiu quantias consideráveis de
tempo e de dinheiro na aquisição de um capital humano que não dará retorno,
porém, enquanto seu portador não for atestado pela entidade de representativa
da categoria. Talvez o dano atual produzido sobre 100% desse sub-contingente
populacional (os estudantes), afora aqueles que tiveram de se encarregar de
viabilizar, ao longo desses anos, que a formação daquele capital humano
correspondesse quase que estritamente àquilo que era exigido pelo exame (os
professores), possa ser considerado, no mínimo, tão grave quanto aquele que é
eventualmente ocasionado pela atuação de profissionais não autorizados, ou
seja, profissionais que ficaram aquém da linha divisória entre os que estão e
os que não estão autorizados a exercer aquela profissão.
Se
isso faz sentido, podemos dizer que o exame não cumpre apenas, nem
primeiramente, uma função no que concerne a nos proteger de riscos. Ele se
presta, antes, a criar distinções, a estabelecer hierarquias, rankings, classificações, a definir
critérios de exclusão, de um lado, e privilégios, de outro, a motivar a
competição e a insuflar a concorrência e o individualismo, anulando assim todas
as formas de cooperação que poderiam lhe contrapor alguma forma de resistência.
E tudo isso graças ao impulso fundamental promovido por um Leviatã pedagógico,
composto de algumas dezenas de questões, que não entende outro idioma senão o
do medo, da ameaça e da pressão. No final das contas, talvez não seja tão má a
ideia de pôr fim ao exame da Ordem. Isso, entretanto, não será possível
enquanto não se puser fim à ordem do exame.
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